No meu último post, discutimos um pouquinho sobre pornografia em realidade virtual no que é, indiscutivelmente, seu revolucionário feito: o de “literalizar” nosso imaginário por meio de uma simulação. Aliás, essa tem sido a principal vocação do desenvolvimento de novas interfaces: a capacidade de presentificar o que é ausente.
O mesmo princípio vale para essa intersecção entre sexo, pornografia e tecnologia – três partes cada vez mais indistinguíveis de um mesmo fenômeno.
Ao presentificar o que é ausente, iniciativas pungentes como o pornô em realidade virtual e o uso de robôs sexuais abrem questões éticas e morais sobre seus usos que ainda não fomos capazes de aprofundar.
Mas a grande problemática não está necessariamente naquilo que essas tecnologias propõem explicitamente, mas o que elas sugerem discretamente. E lá, no que não é dito, que reside precisamente sua ideologia.
O problema moral no uso dos prazeres
Sobre o sexo e as sexualidades, paira desde a antiguidade um debate moral e ético. Essa moral sobre os prazeres, por sua vez, é uma sintomática de uma determinada ideologia. E, por ideologia, não faço referência ao debate simplista sobre direita e esquerda, liberais e conservadores, e assim por diante. Não.
A ideologia não é aquilo que se declara abertamente, mas aquilo em que acreditamos sem sequer saber que acreditamos. Aqui, os conceitos de ideologia e imaginário se aproximam, como as forças daquilo que atuamos nas nossas decisões e opiniões cotidianas sem que isso passe necessariamente por um filtro de consciência.
Historicamente, o sexo é um centro de disputa ideológica. Michel Foucault é uma referência ao destrinchar como esse debate evolui na cultura ocidental, principalmente ao longo do segundo volume do livro História da Sexualidade.
A começar pela Grécia, onde, ao contrário do que se comumente assume, existia sim um debate moral sobre as sexualidades (embora o termo “sexualidade” seja uma invenção contemporânea). O termo Aphrodisia, em grego, designa o ato sexual e também outras formas de prazer não necessariamente sexuais, mas eróticas, que vêm do tato, dos gestos e dos contatos.
Aphrodisia, portanto, revela que, para os gregos, não havia uma distinção entre o ato sexual reprodutivo, em si, e o seu prazer ou desejo. Uma coisa vem com a outra. Por isso mesmo, o ato sexual não era tratado como um mal em si mesmo.
Todavia, o que se questionava na antiga Grécia era o uso do prazer. Embora o sexo seja natural e indispensável, para os gregos, desenvolveu-se entre eles uma delimitação que ditava até que ponto era conveniente praticá-lo.
E isso não tinha nada a ver com o bem e o mal. A delimitação surgia porque o prazer sexual era, segundo a tradição filosófica da época, o que tínhamos em comum com os animais, inferiores a nós. Portanto, o nosso uso do sexo, que deveria ser mais elevado, é o que nos diferenciaria dos demais seres da Terra.
Soma-se à palavra Aphrodisia, então, outro termo, o Chresis. A expressão chresis aphrodision designa, justamente, o uso dos prazeres. A aplicação desta expressão era um elogio ao comedimento. Era considerado prodigioso o indivíduo que pudesse obter prazer conforme a necessidade e o tempo oportuno (kairós), sem excessos.
O cristianismo rompe com essa filosofia, e assim o faz quando separa o sexo de seu prazer, assim como distingue carne de espírito. Com o cristianismo, o ato sexual, reprodutivo, é distinguível de seu desejo, este sim pecaminoso.
Embora não haja menção a comportamentos sexuais nos Evangelhos, esta lógica é bem expressa no livro de Mateus, na passagem em que Cristo declara: “Se o o teu olho direito te escandalizar, arranque-o e jogue-o para longe“, porque seria melhor perder um membro do que ter o corpo tomado pela iniquidade.
Em outras palavras, o desejo é uma ausência presentificada por uma imagem. Por ser uma ausência, pressupõe uma forma de angústia. Esse desejo angustiante pode e deve ser separado, lançado fora, pois é moralmente mal para o cristianismo.
Na metáfora de Cristo, o olhar que absorve essa imagem da coisa ausente e acende o desejo angustiante. Por isso, é o olho que deve ser lançado fora. O amor ágape, cristão, também um sinônimo de caridade, promove com essa separação a abolição da angustia do amor erótico, da lembrança da queda que a paixão nos remonta.
O que não se diz sobre sexo tecnológico
Quando falamos de moralidade no sexo tecnológico, nossa tendência é extrapolar os exemplos para discutir extremos. É eticamente aceitável substituir o objeto de desejo de um pedófilo, por exemplo, por um robô de uma criança? É moralmente aceitável que se estupre robôs sexuais ou em ambientes de simulação virtual, em vez de estuprar uma pessoa? Perceba como a vocação da tecnologia se apresenta novamente nesses exemplos: a de presentificar o que é ausente, no caso, saciando um desejo, ainda que seja ele considerado repulsivo.
Mas esses extremos disfarçam justamente o que há de mais sutil nessas iniciativas: uma proposta de controle sobre o sexo, e não só naquele tido como desviante, mas também aquele que nós praticamos “normalmente” — tanto no sentido de comum, como no sentido de normatizado.
Ambas as morais grega e cristã assumem que exista algo no sexo e no prazer que deva ser controlado, seja porque o sexo nos recorde da nossa natureza animal, seja porque o desejo pressuponha uma forma de angústia. Atualmente, porém, esse mecanismo de controle se sofistica e sai das mãos da filosofia e da religião para ir para as mãos da ética do mercado e do consumo.
Na mesma esteira da ética cristã, a ética do consumo é super eficiente em separar o ato sexual, meramente reprodutivo, de seu prazer. Consequentemente, separa o prazer também de seu sofrimento eminente. E assim o faz de modo relativamente simples: um produto que presentifique o desejo, produzido em escala e comercializável.
Esse mecanismo é mais sofisticado porque não trabalha com a repressão da sexualidade, como fez a religião, mas é um controle hedonista por meio de seu exagerado elogio. Um exemplo mais claro disso é a camisinha inteligente, com nanochips e sensores que coletam e armazenam dados sobre a performance sexual. Se, por um lado, essa tecnologia é um elogio ao sexo, por outro, reacende uma ideologia de controle sobre o sexo, agora por meio de uma metrificação.
A ascensão dos robôs sexuais e do pornô em realidade virtual é a demonstração dessa força. O produto separa o sexo do seu prazer. Lá, com o robô, tem-se o prazer, satisfaz-se o desejo pela coisa ausente, mas é um prazer desvinculado da angústia e do medo que há em envolver-se, em deixar-se cair.
É como beber cerveja sem álcool, ou tomar café sem cafeína. Sexo, sem sexo.
Mesmo nesse ambiente tecnológico, presume-se que exista algo no sexo, em seu desejo e em seus excessos, que deva permanecer sob controle. Somente num ambiente assim poderíamos supor, voltando a um caso extremo, que seja aceitável, no futuro, tratar do que consideramos atualmente desvios sexuais, como a pedofilia, com um recurso tecnológico que se coloca no lugar desse desejo.
Mas tente imaginar isso na sua vida: você também está suscetível a aceitar que um produto possa ser colocado no lugar da angústia inerente ao sexo. É uma proposta realmente difícil de recusar: com um robô, fique com prazer do sexo, mas sem o sexo. Satisfaça seus desejos, mas sem assumir por eles responsabilidade.
Nós acreditamos, mesmo sem saber que acreditamos, que exista algo disruptivo na sexualidade que deva mesmo ser controlado. Deixemos as máquinas, então, cuidarem disso?