Somos todos trans ou estamos eternamente em transição, quer você fuja disso ou não. Há, evidentemente, diferentes graduações de alterações, sejam elas emocionais ou físicas.
Eu, zero dúvida, não sou o mesmo que fui ontem, no ano passado e serei outro ano que vem, e me sinto completamente livre em me contradizer porque me assumo como um paradoxo em velocidade de foguete.
A parte ruim, se é que é ruim: amigos, roupas, fotos, discos, livros podem se partir como entulhos/embrulhos espalhados pelo acostamento desse viver. Porque, como digo, o fim da estrada é só parte do caminho. Comento isso, sobre passado, para falar de presente e também de futuro.
Para falar sobre o imponderável: o tempo.
Percebo que muitos amigos que se traduzem através da escrita vez ou outra têm crises, muitas vezes sugeridas como criativas quando, por vezes, são existenciais. Param de escrever, pedem um tempo do pensar aos interlocutores diretos.
Porque casam ou separam, mudam de emprego ou o perdem, pulam do abismo ou precisam ficar imóveis, colocam novos hormônios ou retiram seios, testam novas sexualidades ou param de se masturbar.
O que falar, então, sobre um pilar que não nos acompanha na caminhada: a juventude e/ou a beleza estética? Devo ter uns 3 mil anos porque adoro, ao contrário da maioria dos meus colegas de geração, a ideia de envelhecer, maturar, “avinagrar”.
Gosto de me perceber parecido com meu pai, com minha ascendência, e escrevo isso começando minha caminhada para o meio século. Observar rugas, fios brancos ao redor da genitália, os músculos que desistem de se fingir fortes (quando sem química, claro), os olhos que se cansam e precisam de óculos, a barriga que se assume quarentona, o cansaço das reprises dos encontros amorosos e, o melhor, a tranquilidade em saber que tudo passa.
Até coisa boa. Quando a opinião do outro é, basicamente, ponto de vista que pode (quase sempre) precisar mudar de lentes.
Lembro de uma entrevista em que a atriz Patrícia Pillar, 53 anos, que volta em breve à TV, afirmou que a idade trouxe, de melhor, “mais tranquilidade, equilíbrio e leveza diante dos acontecimentos“. Quanto às crises, ela disse, “elas podem acontecer em qualquer idade, mas com o tempo a gente aprende a lidar com elas com mais serenidade“.
Oja Kodar, 76, a atriz croata viúva de Orson Welles, com quem viveu 24 anos, disse, em outra reportagem: “Eu era jovem e bonita, estava acostumada aos olhares de inveja das outras mulheres. E saber que Jeanne Moreau, ao olhar para mim ao me conhecer, seria capaz de matar, estava cheio de ódio… Ela não perdoou Orson (Welles) por me amar, e não a ela, essa é a verdade. Agora posso dizer isso, porque minha beleza já se foi, não é um peso para mim”.
Tônia Carrero, 95, outra atriz com quem tive a honra de dividir uma tarde, em sua última entrevista para a imprensa, quando de minha passagem por “Marie Claire”, comentou comigo, há nove anos, sobre como reagiu à transição da beleza deslumbrante juvenil à maturidade.
“Ah, você perde um poder. Um poder enorme. Como o poder do político ou do homem muito rico. Diante de uma beleza extrema, os homens param de pensar. Eu usei demais minha beleza. Perder a beleza é duro. O pior é não ter mais o valor que eu tinha. Ai… Isso me custou. Custou abrir mão, sabe? É um poder. Pouco a pouco ela vai indo embora e quando você vê, acabou esse poder. E o mundo trata você de um outro jeito. Os amigos tratam você diferente. Não é por mal. É porque é assim. A beleza é uma força enorme“, disse.
É isso, transições, perdas e ganhos, mas sempre em movimento em direção ao futuro. Costumo dizer que só temos duas certezas nesta vida: errar e morrer. Porque as coisas só acabam por uma fração do tempo. E ele, o Tempo, esse mestre que ri da nossa cara quando nos desesperados nas crises, é muito maior que nossa dor porque ela, por causa dele, também passa.
Agora, imagine tudo isso que relatei trazido para as vertentes da sexualidade? Será que fomos preparados adequadamente para lidar com isso? Será que a ideia que temos hoje está condizente com a vida como ela é aos 70, 80 anos?
E com tantas tecnologias e avanços da medicina, o que você imagina que mudará neste contexto? Faria sentido imaginar que ao menos os robôs não se importarão com nossa pele flácida e por isso nem precisemos nos preocupar em demasia com a autoestima do ponto de vista “corporal”? Estaríamos, neste caso, sofrendo por antecipação?