A vez de criminalizar o Funk – e a sexualidade

A expressão corporal e a música são práticas que muitos teóricos consideram universais na humanidade. Não é de hoje que a música tem tons que servem para embalar a sensualidade humana. Por isso mesmo, os ritmos que se ligam ao corpo, valorizam a dança e a satisfação física – e até mesmo a sexualidade, são vítimas de preconceitos e de proibições.

Serviram em diversos momentos como muleta da política racial e moral de países que se queriam brancos e cristãos, como o Brasil.

Necessidade do ser, a sensualidade é apontada por moralistas como algo a ser evitado, e nutre toda sorte de preconceitos. Esses apontamentos partem de uma centralidade do Estado, uma classe cristã e branca que acrescenta aos valores nacionais e para a necessidade de realização enquanto nação o rompimento com esse tipo expressão.

Para nossa sorte e azar deles, é impossível conter os ânimos da cultura. Não faltaram tentativas, no entanto, e mesmo estas, com suas consequentes reviravoltas, se mostraram falhas e dispensáveis.

No Brasil, por exemplo, já se proibiu o Samba e a Capoeira, mas quando houve necessidade de inspiração e criação de uma unidade nacional, foram liberados. O controle através de datas e locais específicos fora apresentado como condição para a legalidade, mas a constituição dessas construções teóricas sobre a cultura e o controle dos corpos que elas reivindicam permaneceu presente.

Não é só o caso do Brasil 

Nos Estados Unidos, o Rock’n’Roll também passou pelo mesmo processo. Se hoje é visto com bons olhos, já foi o terror das classes altas americanas. As mesmas classes que incorporaram o Jazz, expressão de raiz negra, como parte da chamada “alta cultura”, que ao lado do ritmo protagonizou polêmicas que ainda reverberam com os teóricos de Frankfurt.

A vítima da vez é o Funk

Com origem contestadora nos bairros negros do Rio de Janeiro e de São Paulo, o Funk se popularizou no país como uma expressão ligada à dança e à sensualidade. Suas letras e coreografias desafiadoras diante da moral burguesa costuraram por entre as disputas sociais, pontes que atraem a juventude e incomodam moralistas, machistas e racistas.

Hoje, os hits do Funk atraem milhões de visualizações com frequência em canais como o de Kondzilla. As letras e as danças não escondem o apelo sexual e para a sexualidade.

Por conta desse sucesso, a história se repete. Entre 24 de Janeiro e 16 de Maio, mais de 20 mil pessoas manifestaram apoio ao projeto de lei “Criminalização do Funk como crime de saúde pública à criança e aos adolescentes e à família”.

Com esse número de assinaturas, a sugestão pode ser encaminhada para a Comissão de Direitos Humanos no Senado Federal, que poderá então deferir a proposta como projeto efetivo e seguir os trâmites internos da câmara alta do Congresso Federal.

O texto do projeto é raso, e destila uma série de estereótipos ligados aos adeptos do ritmo, citando incitação à orgia, exploração sexual e estupro. Em entrevista ao portal Alma Preta, o autor do projeto não negou as afirmações e ainda chamou o Funk de “falsa cultura”.

O ritmo não se resume à sensualidade ou sexualidade 

É gerador de empregos, renda, e renovação cultural em um país rico nesse quesito, mas que ainda olha para fora quando busca parâmetros culturais. É importante ressaltar que a presença da sexualidade e do corpo é vista em diversos outros ritmos, como a música sertaneja e o Pop, que mesmo assim não são lembrados nesse tipo de crítica, reforçando a tradição racista e machista brasileira.

A mesma sina se repete, e assim como os já citados Samba, Rock e Jazz, o Funk passa pela reprovação das classes dominantes. Aos poucos, se incorpora, e deixará os latidos vazios e preconceituosos da mesma classe raivosa e violenta no passado, seu lugar de pertença.

Seguirão as batidas, as versões, as danças, a criatividade e as letras que embalam a moda e a cultura da juventude negra e pobre da periferia.

Se nada mudar, veremos a história se repetir. Serão outros atores e ritmos, mas permanecerá a farsa.

Fica um convite para a sua reflexão. Em um mundo de mudanças e possibilidades, será que você também não tem pensado a cultura de uma forma preconceituosa? Já parou para pensar em que situações e associações a sensualidade e sexualidade são aceitas? Onde você guarda seu preconceito?

A vez de criminalizar o Funk – e a sexualidade

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- Jornalista e Pesquisador