Por que a milenar Arte Erótica ainda assusta tanta gente?

Hipóteses sobre o medo do que a arte e a sexualidade expõem. Reflexão sobre algo que ainda precisa ser trabalhado no consciente e no inconsciente em nossa cultura

“O povo não lê nada, trabalha seis dias por semana e no sétimo vai ao prostíbulo”. A frase é atribuída a François Marie Arouet, que se batizou artisticamente de Voltaire na Paris do século 17. Sua obra foi multifocal: arte, direito, física e metafísica traduzidos sob forma de poesia, teatro, tratado, ensaio, panfleto, dicionário, e conto. O dito seria uma resposta a quem o acusava de subversivo.

Há exatos 80 anos, o regime nazista da Alemanha definiu o que era e o que não era arte, que foi chamada de “Entartete Kunst” (Arte Degenarada). Na lista de “degenerados”, tudo e todos ligados ao Dadaísmo, Cubismo, Expressionismo, Impressionismo e Surrealismo. Para “ensinar” o público a “odiar” a arte “impura”, foi montada uma exposição em Munique em que se “demonizava” artistas. Ficou também conhecida a prática nazista de queimar obras em praças públicas por serem pornográficas, atentavam à moral e vilipendiavam a religião.

Resgatar Voltaire e o regime nazista, que tinha como líder Adolf Hitler, pode parecer anacrônico, mas um episódio envolvendo representantes do Movimento Brasil Livre (MBL) e o banco Santander, neste fim de semana, em Porto Alegre (RS), reacendeu uma discussão sobre sexualidade e os limites da arte. A exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira”, no centro cultural de uma agência daquele banco, reuniu 270 obras de 85 artistas que percorrem o período histórico de meados do século XX até os dias de hoje.

O curador Gaudêncio Fidélis pretendia “explorar a diversidade de expressão de gênero e a diferença na arte e na cultura”, temas caros à contemporaneidade. No menu, Lygia Clark, Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Flávio de Carvalho, Alair Gomes e Adriana Varejão, dentre nomes históricos e outros nem tanto, mas muito relevantes no cenário artístico, como o do jovem artista Rodolpho Parigi, do catálogo da importante galerista Nara Roesler.

A mostra, porém, virou alvo de debates virulentos nas redes sociais um mês (repetindo: 30 dias depois) depois de sua abertura. Diante da pressão dos que alegavam “vilipêndio a valores cristãos” e “estímulo à pedofilia e à zoofilia”, a direção da instituição resolveu cancelar a agenda. Quais os limites da expressão artística e, se há, quem os delimita? Uma exposição é espaço público ou privado? Exibição de imagens artísticas que envolvem sexo é apologia? Um indivíduo com uma câmera de celular numa exposição, constrangendo o público, comete infração?

“Dentre as 270 obras da mostra, apenas quatro talvez pudessem ter causado essas manifestações. Recebo essa decisão como um choque. Não esperava nada do gênero, até porque a exposição estava sendo muito bem recebida e elogiada até agora. Estava tudo bem, até que, em algum momento, alguma coisa apareceu e desencadeou tudo isso. A perspectiva e a narrativa que são construídas sobre a obra na exposição é completamente distorcida do contexto em que ela se encontra, inclusive, a respeito da iconografia. Ela não tem essa caráter chocante que foi retratado nas redes sociais”, disse o curador em entrevista ao jornal Zero Hora.

Para ele, e isso é fato, as redes sociais têm a possibilidade de contextualizar as coisas de outra maneira. “Eles criaram uma narrativa que não corresponde a realidade. Muitas pessoas não viram a exposição, viram a narrativa que foi construída na exposição”. Uma das críticas que ele recebeu é que a exposição teve endosso da Lei Rouanet. “Ela não foi criada para que nos dissessem o que nós podemos ver ou não. Em 2017, algumas pessoas dizerem o que a gente pode ou não ver, é uma questão de fundo complicado”.

A advogada Fernanda Calhado explica que compete à lei federal “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”. Também é de competência da Constituição, conforme disposto no artigo 220, parágrafo 3º, inciso II, “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”.

Para ela, isso seria melhor solucionado se o o curador sugerisse que público deveria assisti-la, ou ao menos deixar claro que haveria cenas de nudez e sexo. Assim, o público sensível a tal tema poderia decidir não comparecer. A advogada ainda salienta que nem a Lei Rouanet, nem a Instrução Normativa do Ministério da Cultura, são taxativas com relação ao tipo de limitação de acesso, exigindo apenas a garantia de democratização da exposição, não sendo expressas com relação à censura de idade. Há quem defenderá, portanto que, mesmo tendo os benefícios da lei, a exposição poderia ter classificação etária. Há, ainda, os que garantirão que, por ser beneficiária, a exposição deveria ser livre para público de todas as idades.

Esse tipo de celeuma não é nova. “David”, reinterpretação renascentista da temática heroica grega do nu masculino, de Michelangelo, foi apedrejada quando exposta em praça pública. A“Venus de Urbino”, de Tiziano, e “La Maja Desnuda”, de Goya, foram consideradas indecentes quando pintadas e rejeitadas por anos. Em ambas, duas mulheres nuas deitadas em camas. Os motivos foram os recorrentes: “atentado ao pudor, à moral e aos bons costumes”, “deseducação das nossas crianças”, “perdição”, “escândalo”, “pornografia”, “heresia”.

A arte não é religião, nem escola.

Não precisa transcender, aliviar ou confortar. Não precisa imobilizar, tensionar ou confrontar. Não precisa nada, mas muitas vezes ela gera debates acalorados quando há referências à sexualidade de nossa espécie. O que impressiona é que o incômodo está ganhando corpo com a mesma força e interesse com que grupos conservadores e retrógrados estão em atuação neste momento. Há casos recentes de interrupção de temporada de espetáculos de teatro, e de prisão de artista plástico por causa de nudez.

Isso apesar da pornografia disponível na internet, na publicidade, em novelas ou enviada pelos celulares. A curto prazo, sim, provoca erotização precoce de crianças e até de adolescentes. Arte, inclusive a erótica, não tem moral, porque essa questão é relativa a tempo e espaço, e inclui reações de paixão e repulsa. Arte não deveria ter compromisso com dogmas ou éticas sexuais.  A propósito, sugiro que os incomodados com a arte erótica reclamarem com o Museu do Prado, na Espanha, que exibe, com vigor, “O Jardim das Delícias Terrenas”, tríptico de Hieronymus Bosch, nascido no século XV. Parte da obra é a foto que ilustra esse texto e é, sim, uma grande e deliciosa orgia.

Por que a milenar Arte Erótica ainda assusta tanta gente?

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- Não basta sermos humanos, precisamos ser melhores humanos.

2 Comentários

  • Marcondes Pereira Da Silva De Mesquita
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    Seu artigo é excelente João Luiz Vieira. Vejo nesta relação de desprezao e raiva pela arte erórica uma relação ambivalente e contraditória, pois é função da arte despertar a reflexão crítica, não só pelo o que é tido como belo e/ou confortável, mas por todos os fenômenos da experiência humana e universal que nós percebemos ou fazemos, inclusive a questão do erotismo, da pronografia e da diversidade de gênero.